segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Prosa na estante




O relógio por testemunha




(luiz alfredo motta fontana)







Creio que estava previsto naquela noite em que perdi o relógio.

Sim, eu vestia o relógio, o mesmo que anotara os momentos em que, com extrema frieza, disse adeus à outra.

Qual a razão de termos uma outra em momentos que deveriam ser só de espera?

Qual a desculpa para a frieza?

Mas o relógio vira e anotara, como testemunha zelosa de um crime nada perfeito.

Nunca me reprimira.

Mesmo quando, em gesto inútil, o tirei e coloquei ao lado do cinzeiro, quase que o condenando a contar pontas de cigarros pelo resto da noite.

A conversa fluira em torvelinhos, passando pelo inevitável cinema francês, contornando o poema concreto, desprezando o gongorismo, e afinal, dedicando-se às mulheres, não às de Atenas, mas às da mesa.

Lembro, e bem de ter pago a conta, contando com a sempre generosa colaboração do velho e costumeiro garçon, bastava o olhar, e ele esperava a volta do toilette com a conta em mãos.

Ao acordar em travesseiro estranho, tentando entender a razão da cor do teto, tateando no criado mudo e diverso, percebi, esquecera o relógio, seus rubis e suas histórias, ao lado do exausto cinzeiro.

Foi assim que teu sorriso meigo, estendendo a chicara de café, me encontrou naquela manhã, a primeira de muitas, leves, serenas, desde então sem testemunha.

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