sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Prosa na estante




Ela e o "por detrás"



(luiz alfredo motta fontana)







Entre a névoa do quinto uísque a observou.


Dançava como há muito não assistia, respondia, com breves meneios, cada florear da orquestra, sem perder, segundo sequer, a harmonia que esculpia o mover do corpo.

Passaram o resto da noite percorrendo o salão, como nos bailes de outrora, decretaram em silêncio que a noite tinha dono.

Esse o começo, antecipando o desnudar, constataçõ singela , que o surpreenderia, apenas o rosto envelhecera, adquirira olheiras sóbrias, que acompanhavam o frenesi do falar, e davam tom dramático a sua viuvez de longa data.

Após, esse início ao som de "New York, New York", em suave descontentamento, ouvindo frases e mais frases, quase que conexas, todas a respingar o "politicamente correto", percebera que o texto não acompanhava a imagem ou a música

Nesses momentos, notava a presença oblíqua, citada tacitamente, de "por detrás", velho conhecido da família, do tempo em que ela ostentava um belo rosto, no antes desassistido corpo, que renascia a cada noite compartilhada.

"Por detrás", nascera assim, chato, sem brilho, mas possuidor de vontade enorme, de teorizar sobre tudo, desde que o discurso soasse engajado em algum movimento que assistira distraído nos anos sessenta.

Na sua ausência, trocavam, ela e o "por detrás", longas tertúlias sobre a ética e a conseqüente falta de bons costumes.

Uma noite, entre copos baixos e gelo, ela, a senhora de corpo juvenil, avançou o sinal, ultrapassou a medida, resolveu o enquadrar em sua monótona visão de mundo, afinal ele parecia "poeta" frente ao mundo de injustiças, aquele mundo injusto, logo ali, após o bar.

Despediu-se dela, de pronto, ali mesmo no bar, como quem se despede do mordomo, não se queixou, não retrucou, apenas a deixou, perplexa em seu destino.

Por pouco tempo, afinal, encorajado com o que vira, o "por detrás", tomou coragem cívica e se candidatou, acredita-se na mesma noite

Hoje, ela e o "por detrás", promovido a "de lado", vivem felizes, desfilando suas teses, nem tão literálias, discursando sobre misérias, entre um gole e outro, do sagrado scotch de todas as noites.

Quanto a ele, por vezes sorri, afinal, distraídamente, cometera uma boa ação, reviveu o corpo, e trouxe um pouco de luz aquele rosto, de tantas sombras.

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